quinta-feira, 31 de março de 2011

UMA BELA ENTREVISTA COM JOAQUIM CRUZ.

O mítico medalhista de ouro dos Jogos de 1984 diz que as chances de o Brasil
ter um bom desempenho na Olimpíada de 2016, no Rio, morreram antes mesmo de
nascer
Vá ao YouTube e digite "Joaquim Cruz 1984". O que aparece é lmin43s de uma
das mais extraordinárias provas de atletismo da história, o tempo que o
magrelo tímido nascido em Taguatinga, na periferia do Distrito Federal,
então com apenas 21 anos, levou para vencer os 800 metros nos Jogos de Los
Angeles, com novo recorde olímpico. Em 1988, na mesma prova, ficaria com a
prata. "Acho que meus dois filhos adolescentes, Kevin e Paulo, de 15 e 17
anos, nunca viraI,Íl essas imagens", diz Cruz. Há três décadas nos Estados
Unidos, ele fala português ,com sotaque. Troca algumas palavras e esquece
outras. Casado com uma professora americana, vive em San Diego, na
Califórnia. Trabalha com equipes paraolimpíadas e cuida da reabilitação de
soldados feridos. Mantém a forma ao intercalar corridas de 8 quilômetros em
um dia e, no outro, 3 quilômetros e musculação. Tem apenas 5 quilos mais que
os 80 do apogeu. "Mas gosto mesmo é de basquete", avisa. "Outro dia fiz 40
pontos numa partida." Mesmo longe do país, ele ainda é uma voz influente
quando se trata de medir os desmandos do esporte brasileiro - e personagem
obrigatório no ensaio geral para a Olimpíada de 2016, no Rio.


Já são quase trinta anos fora do Brasil. Por que tanto tempo?
Um raciocínio interessante me vem à mente. No livro O Poder do MiTO, o
historiador americano Joseph CampbelI diz que toda aventura heróica tem
início com uma pessoa de quem alguma coisa foi retirada. Essa pessoa decide
partir para uma série de desafios além do ordinário de modo a recuperar o
que foi perdido ou descobrir o seu real propósito de vida. Somente depois de
realizar essa experiência extraordinária é que ela retoma com uma mensagem.
Conheço muitos brasileiros de diferentes profissões que tiveram de se
arriscar no exterior porque não encontraram oportunidades no Brasil.


.É o seu caso? Sim, e talvez não seja
O momento de retomar com a minha mensagem. Diria, em outros termos, que a
força do universo ainda não permitiu que eu voltasse para casa. Cheguei a
ensaiar uma mudança para o Rio de Janeiro, no ano passado, mas ela não
vingou. Quando fui para os Estados Unidos, tinha no Brasil apenas minha vida
simples em Taguatinga, na periferia do Distrito Federal. Hoje, tenho mulher
e filhos adolescentes. Qualquer transferência pressupõe que eles também
trabalhem e estudem, sigam sua vida. Não conseguimos acertar esses detalhes,
então a volta foi adiada. Mas insisto: saí do Brasil, mas o Brasil não saiu
de mim, nunca.

O que as autoridades esportivas brasileiras deveriam fazer para manter
atletas como você no país?
Deveriam apenas fazer o correm para cuidar dos filhos da nação e do esporte
a longo prazo. Eu sugeriria uma reforma geral, um leque de medidas
permanentes. Em 2005, o governo do presidente Lula, por meio do ministro do
Esporte, Agnelo Queiroz, lançou em São Paulo a Política Nacional do Esporte,
para atuar na promoção da atividade física como fator de desenvolvimento
humano, dando atenção especial à base, às escolas, como ferramenta de
inclusão social. As ideias são corretas, mas nunca saíram do papel. O
resultado? Nossos estudantes continuam sem oportunidades de praticar esporte
de maneira organizada e competitiva.

O que se faz nos Estados Unidos que inexiste no Brasil?
Em primeiro lugar, há cultura e tradição no esporte. Há comprometimento e
participação direta de todos os responsáveis na educação esportiva da
criança. Quando digo todos, estou me referindo a governo, família, líderes
comunitários, professores, dirigentes e empresários. Todos têm a
oportunidade de participar e fazer a sua parte da melhor forma possível em
patamares e momentos diferentes. Há outro ponto: o governo pensa longe. Em
1905. por exemplo, em decorrência de acidentes fatais durante alguns jogos
de futebol americano, o presidente Theodore Roosevelt convocou duas reuniões
com os líderes do espane universitário na Casa Branca. Houve uma reforma
imediata nas regras do jogo. Em 1906, foi fundada a National Collegiate
Athletic Association (NCAA), destinada a gerenciar especificamente os
esportes universitários. Hoje, passados 105 anos, toda a cadeia educacional
acompanha o que foi imaginado no início do século passado.

É possível medir a importância da formação esportiva de base ainda na
escola?
Está mais do que provado que o esporte na escola dá retomo para a sociedade.
Em 2004, a ONU fez um estudo em busca de uma resposta a uma pergunta
crucial: o que cada governo faz ""com a área esportiva? No fim, computados
os dados, concluiu-se que, para cada dólar investido em atividade física na
infância, o governo tem um retomo de 3,4 dólares, com a redução da ida de
meninos e meninas a centros de saúde, menos internações, melhor qualidade de
vida e, principalmente, progressos no rendimento escolar. Nos países que
investem eu políticas públicas de esporte na escola, as reprovações baixam
expressivamente É assim em nações ricas ou pobres, não há diferença.

Há chance de despontar no Brasil, em breve, quem sabe para os Jogos 2016,
um novo Joaquim Cruz, um atleta vitorioso como você foi?
Sim, embora a probabilidade seja remota. Há atleta em gestação tão
promissores como Cesar Cielo. Fabiana Murer e Diego Hypolito. Mas será muito
difícil para as novíssimas promessas subir ao pódio nos Jogos de 2016, é
tarde demais. Se deixarmos de ser tão insanos e usarmos a criatividade, Com
muita sorte poderemos prepará-Ios para a Olimpíada de 2020. A Olimpíada de
2016 e, antes disso" Copa de 2014 **.

São os dois maiores eventos globais realizados no Brasil. Passaremos
constrangimento?
Eles terão sucesso se conseguirmos resgatar um legado maior para a sociedade
que a sua mera realização. Estive no Parque Olímpico em Sydney recentemente
e fiquei impressionado ao ver o fluxo de turistas ainda visitando o I e o
uso diário das instalações esportivas. Podemos dizer, hoje, que os 10 de
Sydney deram certo porque daqui dez anos as instalações esportivas ainda
estão em bom estado, têm manutenção diária e são utilizadas todos os dias
pelos atletas e pela comunidade. Importa o que fica, não o que passou.

Não seria o caso de antes melhorar I educação esportiva para somente depois
desse passo dar outro, tão grande, q sediar uma Olimpíada?
Sem dúvida mas na verdade pouquíssimos países seguem esse raciocínio
natural. É também da nossa natureza construir um complexo esportivo com uma
a de futebol com capacidade para 100 000 torcedores no meio de um bairro
residencial para depois ameaçarmos destruir o estádio de atletismo para
instalar um estacionamento que· deveria estar incluído no projeto iniciaL
Cresci vendo cidades no Distrito Federal, com o incentivo de políticos,
brotar do nada, sem hospital, escolas ou estrutura de saneamento básico.
Estadios investindo pesado no esporte de alto rendimento ano após ano, mas
quebrando a cabeça porque deixamos de investir na base e agora não temos
quantidade nem qualidade para poder trabalhar.

O problema são os cartolas?
O problema é mais profundo. A conduta de alguns dirigentes é consequência
da forma como as leis foram redigidas. Se os dirigentes estão utilizando as
organizações nacionais para servir a seus interesses pessoais, é obrigação
das autoridades máximas revisar a legislação com profundidade, e alterá-Ia.
O sentimento é que todo mundo parece estar usando o esporte para servir a si
próprio.

Na Rio 2016, temos uma inédita situação: o presidente do Comitê Olímpico
Brasileiro é o mesmo do Comitê Organizador. Está certo?
O Presidente do Comitê Olímpico Brasileiro está no esporte há muito tempo e
deve ter as razões dele para encarar tantos desafios e responsabilidades ao
mesmo tempo.

Sua medalha de ouro olímpica foi conquistada há quase 27 anos. O Brasil
esportivo melhorou de lá para cá?
Melhorou muito no aspecto de patrocinadores, instalações esportivas, eventos
internacionais e oportunidades para os atletas brasileiros, mas infelizmente
os resultados obtidos nos últimos anos não refletem o investimento no
esporte.

Não é vergonhoso que tenha melhorado tão pouco?
Diria que é uma grande pena não aproveitar o nosso material humano para
transformar o Brasil numa potência esportiva.

Henrique Meirelles, ex·presidente do Banco Central, acaba de ser nomeado
pela presidente Dilma Rousseff para a presidência da Autoridade Pública
Olímpica CAPO). É uma boa noticia?
Excelente. o currículo e o trabalho dele mostram que é uma pessoa ética e
séria. Ele não porá seus interesses e "ambições pessoais acima do trabalho
que terá de fazer.

Seu contato com o Brasil, além da família, é um instituto dedicado a
crianças carentes. Há alguns anos, porém, um lote de sapatilhas usadas que
você levaria aos meninos e meninas necessitados foi barrado na alfândega.
Por que é tão difícil querer ajudar?
Às vezes perdemos o senso de servidor público porque achamos que todo mundo
está ali só para tirar vantagem. Pagamos caro pela falta de honestidade de
alguns oportunistas. Quando cheguei com a bolsa cheia de tênis semiusados e
expliquei que eram para ser doados aos meus garotos de Taguatinga, um dos
policiais me pôs na mesma classe dos "contadores de histórias furadas".
Hoje, felizmente, o Instituto Joaquim Cruz tem a parceria da Nike e não há
mais necessidade de trazer os calçados dos Estados Unidos.

Uma de suas principais atividades nos Estados Unidos, hoje, é cuidar da
reabilitação de soldados feridos em guerras, amputados. Qual é a emoção
proporcionada por esse tipo de trabalho?
Trabalhar com soldados, muitos deles amputados, é gratificante. Tenho a
oportunidade de conviver com indivíduos jovens que dedicaram sua vida a algo
maior que eles próprios e retomaram como heróis nacionais. As histórias
deles me sensibilizam e mantêm meus pés no chão.

Quem foi - ou é - o maior esportista da história do Brasil?
Ayrton Senna foi um grande competidor. Dedicou sua curta existência a
desafiar os limites, todos. Foi um atleta-modelo dentro e fora do palco de
competições. Hoje celebramos o sacrifício dele nos projetos sociais que
estão espalhados pelo Brasil.

Houve alguém que tinha tudo para ser um gigante, um monstro sagrado, mas não
conseguiu chegar lá?
João do Pulo tinha potencial para ser o Jesse Owens do Brasil. Não conseguiu
o ouro olímpico, e é uma pena que tenha morrido tão cedo, depois de uma vida
trágica.
Ao falar da ansiedade que antecede uma grande competição, você chegou a
dizer: "Se você não se controlar, não consegue dormir, e, se não dormir,
está morto como competidor".

Como dorme um ex-campeão olímpico longe do tempo de fama?
Até pouco tempo atrás, eu ainda tinha sonhos de chegar atrasado para as
competições nas Olimpíadas. Hoje meus dragões internos estão em paz. As
imagens da minha experiência no esporte como atleta estão se distanciando na
minha mente. Agora elas são preenchidas com as imagens dos meus filhos e as
novas oportunidades de trabalho. Meus dois filhos, de 15 e l7 anos, mal
sabem quem fui no atletismo. Gostam de basquete. Gostam de música, tocam
piano. Posso dizer que, levados a falar de esporte, roubaram minha idéia:
nunca escondi que sempre preferi o basquete ao atletismo, e olhe que fui um
excelente jogador antes de começar a correr. Não gosto de me vangloriar, eu
e minha mulher levamos uma vida extremamente simples, então sigamos em
frente.

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